Bernard Appy
Artigo publicado no jornal Estado de São Paulo, 08 de agosto de 2016
Se for aprovada, a proposta de emenda constitucional (PEC) que limita a expansão das despesas primárias da União à inflação representará um grande avanço para o modelo de gestão das contas públicas do Brasil. Uma gestão fiscal baseada no controle de despesas é muito mais racional que um modelo baseado em metas de superávit primário, que é claramente pró-cíclico, criando espaço para a expansão de despesas em períodos de crescimento e exigindo cortes ou aumento de receita em períodos de contração econômica. Como as despesas correntes são extremamente rígidas, o ajuste fiscal no Brasil nas últimas décadas tem sido feito basicamente via aumento da carga tributária e corte de investimentos, o que tem sido extremamente nocivo para o crescimento.
Outra medida positiva da PEC é a desvinculação do piso de despesas com educação e saúde da arrecadação, adotando-se para este piso o mesmo critério adotado para o total das despesas primárias, ou seja, a correção pela inflação do ano anterior. Não se trata de prejudicar as áreas de saúde e educação, mas sim de substituir um modelo ruim, pois a vinculação de receitas também é pró-cíclica, por um modelo mais transparente e democrático. Nada impede que as despesas com saúde e educação fiquem acima do mínimo, mas o modelo deixa claro que isso só será possível se outras categorias de despesas crescerem menos que a média.
Ainda que a PEC de limitação dos gastos seja um grande avanço, ela não garante, por si só, um ajuste fiscal estrutural. Para que a PEC realmente represente uma mudança na trajetória fiscal do país, ela dependerá de outras medidas legislativas e, eventualmente, de algumas mudanças de concepção.
De fato, o cumprimento dos limites da PEC só será factível se houver uma reforma que reduza o ritmo de expansão das despesas com previdência (inclusive dos servidores federais) e com assistência a idosos. Tais gastos, que respondem por pouco mais de 50% das despesas primárias da União, crescem anualmente a um ritmo próximo a 4% acima da inflação, mesmo sem aumento real do salário mínimo. Se as regras previdenciárias não forem mudadas, isso significa que todas as demais despesas da União teriam de ser reduzidas, em termos reais, em cerca de 4% ao ano, o que claramente não é factível no longo prazo.
Também seria melhor que o controle da expansão das despesas fosse permanente e não temporário, como proposto na PEC, obviamente permitindo-se um crescimento das despesas superior à inflação após a fase inicial de ajuste fiscal. Num modelo permanente, o limite de crescimento real das despesas seria revisto periodicamente, em princípio a cada mandato presidencial.
Outra deficiência da proposta do governo é que ela não contempla uma avaliação prévia da compatibilidade entre ações que elevam as despesas e os limites propostos. Na forma atual a PEC não impede que sejam aprovadas leis que elevem os gastos acima dos limites em anos subsequentes, mas apenas estabelece medidas a serem adotadas caso o limite seja descumprido (por exemplo via suspensão de aumentos salariais já aprovados para servidores).
O risco deste modelo é que ele leve a um ajuste fiscal de má qualidade, no qual um aumento excessivo de despesas correntes (como pessoal ou previdência) tenha de ser compensado via cortes drásticos de investimentos, ou mesmo via atraso no pagamento de despesas de custeio essenciais para a atividade do setor público.
O ideal seria que a PEC de limite dos gastos viesse acompanhada de medidas que estabelecessem sublimites por categorias de despesas e que permitissem um controle prévio da adequação de qualquer ato que afete as despesas (como a aprovação de uma lei) a esses sublimites. Tais medidas não necessariamente têm de constar da PEC, podendo ser implementadas por lei complementar. Mas seria positivo se houvesse uma sinalização de que a PEC da limitação dos gastos será acompanhada de mudanças legislativas que viabilizem um controle prévio dos atos que elevam as despesas públicas, o que tornaria o modelo proposto muito mais consistente.
Por fim, para além dos temas estruturais, há uma questão que não tem merecido a devida atenção na discussão recente sobre a limitação dos gastos. Trata-se do fato de que a PEC estabelece, a partir de 2017, limites para o crescimento das despesas relativamente ao que foi gasto no ano anterior, mas não há um limite de despesa estabelecido para 2016. Ou seja, quanto mais elevada for a despesa em 2016, maior poderá ser o gasto em 2017 e nos anos seguintes. Para 2016 há apenas um compromisso de que o déficit primário não será superior a R$ 170 bilhões.
Neste contexto, quanto maior for a receita em 2016, maior poderá ser o gasto não apenas em 2016, mas também nos anos seguintes. Um montante elevado de receitas extraordinárias em 2016 (por exemplo nos processos de regularização de ativos no exterior) abriria espaço para um volume mais elevado de despesas por vários anos.
Seria positivo se o governo se comprometesse, ainda que informalmente, com um limite para as despesas primárias da União em 2016. Seria mais positivo ainda se houvesse transparência sobre como se compõe esse limite, não apenas por categoria de despesa, mas também no que diz respeito à composição entre despesas do ano e pagamento de despesas atrasadas.
A atual equipe econômica – que tem entre seus membros vários críticos da contabilidade criativa do governo anterior – tem um forte compromisso com a transparência das contas públicas. A definição clara de um limite de despesas para 2016 e da composição destas despesas apenas reforçaria este compromisso.