Bernard Appy
Artigo publicado no jornal Estado de São Paulo, 13 de dezembro de 2016
Este é o primeiro de três artigos (publicados a cada duas semanas) que têm como objetivo discutir os impactos distributivos do sistema tributário brasileiro. Embora eu acredite que haja espaço para tornar o sistema tributário brasileiro mais progressivo, a discussão sobre o tema muitas vezes é feita de forma segmentada e parcial, o que acaba criando alguns mitos, que mais atrapalham que ajudam na identificação de soluções racionais. Neste primeiro artigo avalio os mitos relativos à tributação do consumo. No próximo o tema será a tributação da renda.
Mito 1: A tributação da renda é boa e a do consumo é ruim
São muito comuns análises que criticam o sistema tributário brasileiro por ser muito baseado na tributação do consumo (que é regressiva, pois os pobres consomem uma parte maior da renda que os ricos) e pouco baseado na tributação da renda. Há vários motivos, no entanto, para questionar se os impostos sobre a renda realmente são melhores que os impostos sobre o consumo.
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que a principal função do sistema tributário é arrecadar para financiar despesas públicas, que são muito mais eficientes como instrumentos distributivos que a tributação.
Em segundo lugar, é muito mais difícil sonegar um bom imposto sobre o consumo que o imposto de renda. É muito arriscado colocar todos os ovos em uma cesta (a tributação da renda) quando a cesta é furada. Como me ensinou o mestre Isaias Coelho, a tributação da renda e do consumo são complementares e não antagônicas.
Em terceiro lugar, e por fim, a diferença entre a renda e o consumo é a poupança (que nada mais é que a parcela da renda não consumida). Portanto, a diferença entre a tributação da renda e a do consumo é que a primeira tributa também a poupança. Em um país com baixa taxa de poupança e investimento, como é o caso do Brasil, tributar muito a poupança pode não ser uma boa política para estimular o crescimento (embora faltem estudos mais aprofundados sobre este tema).
Mito 2: A seletividade na tributação do consumo é boa
Se a tributação do consumo é inevitável, o senso comum é que deve ser seletiva, ou seja, deve desonerar a cesta básica e tributar com alíquotas mais elevadas bens e serviços supérfluos. Mas o conceito de que alíquotas seletivas são melhores que uma tributação uniforme também é questionável.
Embora seja verdade que, em termos relativos, os pobres gastam mais que os ricos com produtos da cesta básica, em termos absolutos isso não é verdade. Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008, as famílias da faixa de renda mais elevada despendem três vezes mais que as famílias de renda mais baixa na aquisição dos produtos da cesta básica do PIS/Cofins. Ou seja, em termos absolutos, a desoneração da cesta básica do PIS/Cofins beneficia três vezes mais as famílias ricas que as pobres. Seria muito mais racional, como política distributiva, tributar estes produtos e transferir o montante arrecadado para as famílias mais pobres.
Tampouco é verdade que tributar mais produtos considerados supérfluos é progressivo. A título de exemplo, segundo a POF de 2008, as famílias mais pobres gastam 1,6% de sua renda na compra de perfume e as famílias mais ricas apenas 0,3%.
O pior é que, ao se criarem classificações que afetam a tributação dos bens e serviços, criam-se distorções que geram complexidade e contencioso, piorando a qualidade do sistema tributário. No caso do PIS/Cofins, por exemplo, o pão faz parte da cesta básica, mas a farinha de rosca (que nada mais é que pão seco moído) não faz. Mas isso só foi definido após um longo processo que terminou no Superior Tribunal de Justiça.