Apresentação realizada por Victor Holanda, em 08/08/20251

1. Introdução

O debate sobre gestão de custos no setor público ocupa um espaço cada vez mais central nas discussões sobre reforma orçamentária, qualidade do gasto e modernização da administração pública brasileira. A busca por maior eficiência, transparência e accountability no uso dos recursos públicos esbarra, historicamente, em uma lacuna estrutural: a ausência de informações precisas sobre quanto custa produzir e executar políticas públicas e quais resultados efetivos elas geram para a sociedade.

Nesse contexto, formou-se ao longo das últimas décadas um campo de reflexão e prática voltado à construção de sistemas de informação de custos no Estado brasileiro. Essa trajetória, marcada por esforços técnicos, institucionais e teóricos, integra um movimento mais amplo de reforma da gestão fiscal e orçamentária, em sintonia com as transformações internacionais nos padrões de contabilidade pública.

 A exposição de Víctor Holanda, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pesquisador com extensa atuação na área, sintetiza essa experiência acumulada em mais de 25 anos de trabalho com sistemas de custos, tanto em São Paulo quanto no Governo Federal. A partir de uma abordagem sistêmica e transversal, o autor articula teoria, experiência prática e reflexão crítica sobre os caminhos e desafios da gestão de custos no Brasil.

Holanda enfatiza que discutir a experiência brasileira exige “ajustar expectativas”: compreender que a gestão de custos não se reduz a cálculos contábeis, mas implica uma mudança de paradigma na forma de pensar e gerir o setor público. A gestão de custos é, simultaneamente, ferramenta técnica e estratégia política, dependente de condições institucionais, culturais e tecnológicas para se consolidar.

2. A trajetória brasileira da gestão de custos

A história da gestão de custos no Brasil é resultado de um processo cumulativo de construção institucional. Algumas iniciativas pioneiras ocorreram na década de 80, destaque para as iniciativas da Controladoria da cidade do Rio de Janeiro e as do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Numa perspectiva sistêmica, marcos importantes  podem ser destacados na década de 1990, com a implantação, no Estado de São Paulo, do SIAFEM (Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios) e, posteriormente, do SIGEO, um sistema gerencial de execução orçamentária desenvolvido pela Secretaria da Fazenda.

Essas experiências foram pioneiras ao aproximar a contabilidade da gestão. Até então, os registros contábeis eram utilizados sobretudo para controle legal e prestação de contas, e não para subsidiar decisões estratégicas. O SIGEO introduziu uma inovação conceitual importante: demonstrou que os dados financeiros podem gerar conhecimento gerencial e, portanto, podem ser utilizados para avaliar o desempenho do gasto público.

Nos anos 2000, o debate sobre custos públicos ganhou densidade acadêmica. As teses de doutorado de Nelson Machado e Vítor Holanda (USP, 2002) estabeleceram os fundamentos conceituais da política nacional de custos. Machado propôs a integração entre orçamento e contabilidade sob o regime de competência, enquanto Holanda formulou um modelo de controladoria governamental baseado na pesquisa-ação e na teoria dos sistemas. Essas ideias seriam incorporadas à política federal nos anos seguintes, concomitante as inovações trazidas pela Portaria nº 184/2008 do Ministério da Fazenda.

Com a criação (inauguração), em 2010, do Sistema de Informação de Custos do Governo Federal (SIC), o Brasil consolidou um marco histórico. Desenvolvido pelo Tesouro Nacional em parceria com a Secretaria de Orçamento Federal, a CGU e o SERPRO, o SIC materializou a determinação da Lei de Responsabilidade Fiscal e inaugurou uma nova fase da contabilidade pública, agora orientada à eficiência e ao desempenho. As normatizações subsequentes, com a NBC T 16.11 (2011), NBC T 34 (2021) e o Decreto nº 10.540 (2020), consolidam, gradualmente, a gestão de custos como elemento essencial da governança fiscal brasileira.

3. Fundamentos conceituais da gestão de custos

 A reflexão de Holanda está ancorada na defesa da contabilidade como ciência da mensuração. Medir, segundo o autor, é condição para gerir: sem mensuração, não há base racional para decisões públicas. A contabilidade, portanto, deve ser compreendida não apenas como registro de fatos financeiros, mas como guia de gestão e de conhecimento.

Nesse sentido, a controladoria governamental surge como núcleo integrador dos sistemas de planejamento, orçamento, contabilidade e controle. É por meio dela que a gestão pública converte dados em informação, e informação em decisão. A gestão de custos cumpre papel-chave nesse processo, traduzindo o gasto em valor público mensurável.

O autor enfatiza ainda a importância da integração entre informações financeiras e físicas: saber quanto se gasta é insuficiente sem saber o que se entrega. O princípio “não há custo sem produto” sintetiza essa concepção. A mensuração de custos é inseparável da mensuração de resultados e deve orientar políticas públicas com base em evidências.

Por fim, Holanda argumenta que a consolidação da gestão de custos depende da observância do regime de competência, além do regime de caixa. Enquanto o primeiro revela a dimensão patrimonial e econômica das políticas, o segundo mantém foco na visibilidade fiscal e financeira. A combinação equilibrada desses regimes permite compreender, simultaneamente, o impacto orçamentário e o custo real das ações do Estado.

4. Integração sistêmica e complexidade

Para Holanda, a gestão de custos só se torna efetiva quando compreendida dentro de um enfoque sistêmico. O Estado deve ser visto como um sistema complexo, composto por múltiplos subsistemas interdependentes (orçamentário, financeiro, contábil e físico), que precisam atuar de forma articulada.

A gestão de custos, nessa perspectiva, é uma tecnologia de integração institucional. Sistemas como o SIC e o SIAFI cumprem papel estratégico ao promover interoperabilidade e coerência conceitual entre diferentes órgãos e bases de dados. Essa integração não é apenas técnica, mas também organizacional e cognitiva: exige que o Estado aprenda a cooperar internamente, compartilhando informações e objetivos comuns.

Inspirado na teoria da complexidade e no conceito de aprendizado institucional, Holanda sustenta que a modernização administrativa é um processo incremental, construído na prática. O desenvolvimento do SIC, nesse sentido, exemplifica a ideia de inovação adaptativa: um sistema que evolui à medida que é utilizado, ajustando-se às realidades e necessidades do serviço público.

A gestão de custos torna-se, assim, uma forma de autoconhecimento estatal. Ao integrar dados financeiros, físicos e patrimoniais, o Estado aprende sobre si mesmo, suas estruturas, seus custos e suas eficiências, adquirindo capacidade para melhorar continuamente sua gestão e sua política fiscal.

5. O Brasil em perspectiva internacional

No plano internacional, a experiência brasileira é reconhecida como uma das mais inovadoras na América Latina. Em estudo conduzido por Holanda em cooperação com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), o país foi comparado a casos de referência, como Nova Zelândia, Austrália, Reino Unido, dentre outros.

Os resultados indicaram que o Brasil ocupa uma posição intermediária: avançado conceitualmente e normativamente, mas ainda limitado no uso efetivo das informações de custos na gestão. Enquanto países como Nova Zelândia e Austrália incorporaram plenamente os custos ao orçamento por resultados, o Brasil destaca-se por sua capacidade de inovação em contextos de restrição fiscal, desenvolvendo soluções próprias e adaptadas à sua realidade federativa.

Essa singularidade decorre de um modelo de evolução híbrido e incremental, que alia forte produção acadêmica e base normativa sólida a uma implementação gradual e cooperativa. O desafio atual, segundo Holanda, é consolidar essa trajetória, transformando a informação de custos em insumo direto para decisões de planejamento e políticas públicas.

6. Desafios contemporâneos e perspectivas futuras

Os desafios para a consolidação da gestão de custos no Brasil se distribuem em três dimensões principais: cultural, tecnológica e institucional.

No plano cultural, persiste a visão da contabilidade como instrumento de controle e prestação de contas, com ênfase maior na dimensão financeira, em detrimento ao uso como ferramenta gerencial. Superar essa barreira implica promover mudança organizacional e desenvolver uma cultura de mensuração e aprendizado, em que medir não seja sinônimo de fiscalizar, mas de compreender e aprimorar.

 Na dimensão tecnológica, as inovações em big data, business intelligence e inteligência artificial oferecem oportunidades inéditas para o tratamento automatizado e analítico das informações de custos. Contudo, Holanda alerta: tecnologia sem reflexão crítica tende apenas a reproduzir as falhas existentes. É preciso combinar automação com capacidade interpretativa e propósito público.

Por fim, o avanço da gestão de custos depende da continuidade institucional e da coordenação federativa. O autor defende que a política de custos seja tratada como política de Estado, com padrões mínimos de qualidade e interoperabilidade entre sistemas tecnológicos e maior cooperação entre os entes federativos. O objetivo não é apenas criar sistemas, mas integrá-los aos ciclos de planejamento, orçamento e avaliação de resultados.

7. Considerações finais

A experiência brasileira em gestão de custos é, antes de tudo, uma história de aprendizado e construção de capacidades estatais/institucionais. Do pioneirismo da década de 80 à institucionalização federal em 2010, o país consolidou uma base teórica e normativa que coloca a contabilidade pública no centro da gestão governamental. Holanda interpreta essa trajetória como um movimento de transformação cognitiva: o Estado passa a ver-se como organização que aprende, capaz de se medir e se reinventar. A gestão de custos deixa de ser uma técnica de controle e torna-se uma linguagem de governo, orientada pela busca do valor público.

 O futuro desse campo dependerá menos da criação de novas ferramentas e mais da capacidade de usar com inteligência as que já existem. O verdadeiro desafio é simbólico: fazer do custo uma categoria de pensamento suportando os processos de decisão na administração pública. Em última instância, a gestão de custos, como define Holanda, é “uma maneira de o Estado enxergar a si mesmo” — um processo contínuo de conhecimento, reflexão e aperfeiçoamento, em que medir é também governar.

Glossário de siglas

  • BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
  • CGU – Controladoria-Geral da União
  • FMI – Fundo Monetário Internacional
  • NBC T 16.11 – Norma Brasileira de Contabilidade Técnica do Setor Público n.º 16.11, CFC
  • NBC TSP 34 – Norma Brasileira de Contabilidade, 18 novembro de 2021, CFC
  • SIAFI – Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal
  • SIAFEM – Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios
  • SIGEO – Sistema Gerencial de Execução Orçamentária e Financeira
  • SIC – Sistema de Informação de Custos do Governo Federal
  • SERPRO – Serviço Federal de Processamento de Dados
  • USP – Universidade de São Paulo

  1. Adaptação textual realizada pelos pesquisadores do Centro de Cidadania Fiscal – Diego Gonzalez e Giovanna Agualuza. ↩︎

Apresentação Completa: