Apresentação realizada por Manoel Pires, em 16/05/20251
1. Introdução
O debate sobre sustentabilidade fiscal no Brasil é recorrentemente estruturado a partir de indicadores de dívida pública e resultado primário. Esses parâmetros, apesar de sua relevância, não são capazes de capturar integralmente a situação patrimonial do setor público. A literatura internacional recente, consolidada na obra Public Net Worth: Accounting – Government – Democracy, avança na defesa do patrimônio líquido (PL) como medida mais abrangente de solvência. Ao incorporar a totalidade de ativos e passivos, o PL permite uma análise mais precisa do estado patrimonial governamental, com reflexos relevantes para formulação, acompanhamento e avaliação de políticas fiscais. Esse enfoque não apenas amplia o leque de informações disponíveis para o gestor público, como também possibilita decisões mais consistentes do ponto de vista intertemporal, reduzindo distorções e fortalecendo a sustentabilidade fiscal de longo prazo. A experiência internacional, em especial a da Nova Zelândia, fornece elementos valiosos para compreender os ganhos institucionais e práticos da adoção desse modelo.
A utilização da dívida como métrica central de solvência apresenta limitações evidentes. Por se restringir a uma parte dos passivos e enfatizar ativos financeiros em detrimento dos ativos reais, a dívida ignora passivos previdenciários, responsabilidades de longo prazo e ativos patrimoniais relevantes, como participações societárias e infraestrutura. Já o patrimônio líquido agrega de forma ampla ativos e passivos, oferecendo visão mais robusta da posição patrimonial do governo. Essa diferença metodológica não é apenas contábil: ela gera implicações concretas na decisão e formulação de políticas. Nos casos de privatizações de empresas estatais, por exemplo, a aplicação dos recursos obtidos com a venda do ativo na amortização da dívida tende a gerar a impressão de melhora fiscal quando, na realidade, não há aumento de riqueza governamental – o que evidencia a superioridade analítica do PL.
A literatura sugere ainda que há correlação entre posição patrimonial positiva e custos de financiamento mais baixos, pelo menos em países desenvolvidos. Isso significa que governos mais ricos, em termos de PL, podem ser percebidos como de menor risco, obtendo melhores condições de captação de financiamento. Embora faltem estudos para países emergentes, essa relação sugere que a adoção de métricas patrimoniais pode gerar efeitos macroeconômicos relevantes. Além disso, a incorporação do PL no centro da política fiscal exige a migração da contabilidade pública do regime de caixa para o regime de competência, uma vez que apenas este permite o registro adequado de compromissos intertemporais. A contabilidade de competência amplia a visibilidade sobre obrigações previdenciárias, compromissos salariais de longo prazo, renúncias fiscais e operações de crédito que se estendem por décadas. Ela também corrige distorções recorrentes, como a miopia em relação a investimentos, que aumentam o déficit no curto prazo, mas resultam na geração de ativos e fortalecimento patrimonial no médio e longo prazo.
2. As dimensões da integração do patrimônio líquido
2.1 Gestão de Ativos, Passivos e Desafios de Implementação
A integração do patrimônio líquido ao debate fiscal induz a uma gestão mais ativa dos ativos públicos. O registro detalhado de imóveis, participações acionárias, infraestrutura e outros bens impõe transparência e incentiva uma administração voltada à maximização de valor e à criação de receitas futuras. Da mesma forma, o reconhecimento adequado de passivos previdenciários e de longo prazo evita que decisões orçamentárias de curto prazo comprometam a solvência futura. Essa ótica patrimonial permite enfrentar de forma mais clara o dilema intergeracional, ao evitar que políticas atuais sejam financiadas à custa do empobrecimento das próximas gerações.
Entretanto, a operacionalização desse modelo apresenta limitações. O uso do PL como meta fiscal numérica enfrenta obstáculos importantes, já que mudanças metodológicas podem gerar oscilações artificiais no indicador, fragilizando sua função como âncora de política fiscal. Entre 2017 e 2020, por exemplo, alterações contábeis resultaram em deteriorações de centenas de bilhões de reais no PL brasileiro sem correspondência com fatos econômicos, o que compromete sua confiabilidade. Ademais, o PL pode ser manipulado por meio da reavaliação de ativos ou da postergação do reconhecimento de passivos. Por isso, sua utilização requer arranjos institucionais fortes, com auditoria independente e padronização metodológica. É justamente nessa dimensão que a experiência neozelandesa se mostra instrutiva: a credibilidade do modelo depende de sistemas contábeis consistentes e de governança institucional robusta, capazes de impedir distorções e manipulações.
2.2 Regras Fiscais, Críticas ao Modelo Vigente e a Experiência da Nova Zelândia
As regras fiscais vigentes, ao priorizarem dívida e resultado primário, ignoram parte substancial do balanço governamental. Essa limitação compromete a capacidade de estimular a acumulação de ativos e pode levar a políticas que fortalecem indicadores de curto prazo, mas reduzem o patrimônio líquido. A consequência é uma política fiscal que atua contra a justiça intergeracional. Embora as regras fiscais sejam úteis como instrumentos de contenção na margem, sua efetividade é reduzida diante de ajustes de grande magnitude e não resolve os conflitos distributivos inerentes às escolhas fiscais. Na prática, funcionam como barreiras de curto prazo, mas não induzem mudanças estruturais nem protegem de forma plena a posição patrimonial do setor público.
Nesse contexto, a Nova Zelândia desponta como caso emblemático de integração patrimonial às finanças públicas. Desde os anos 1980, o país consolidou um modelo baseado em três pilares: aprimoramento dos registros patrimoniais, gestão ativa de ativos e regras fiscais vinculadas ao resultado operacional sob regime de competência. O balanço governamental passou a ser publicado de forma tempestiva e confiável, acompanhado de auditorias independentes reportadas ao Parlamento, garantindo legitimidade e transparência. As metas fiscais neozelandesas não se concentram no resultado primário, mas no resultado operacional antes dos ajustes contábeis, e incluem parâmetros explícitos para a manutenção do patrimônio líquido em torno de 40% do PIB. Essa prática permitiu ao país acumular riqueza governamental ao longo do tempo e utilizá-la como amortecedor em períodos de crise, como em 2008 e 2020.
A experiência neozelandesa mostra também que a mudança para uma perspectiva patrimonial exige arranjos institucionais complexos, como a capacitação da burocracia, o desenvolvimento de sistemas contábeis avançados, a integração entre órgãos de finanças e planejamento e, sobretudo, mecanismos de accountability que inibam manipulações. Além disso, evidencia-se que regras patrimoniais não eliminam dilemas políticos: há, por exemplo, tensões quanto ao uso do PL acumulado em períodos de bonança, e debates sobre até que ponto ativos estratégicos devem ser utilizados para financiar gastos correntes. A Nova Zelândia conseguiu mitigar parte desses dilemas com governança forte, mas não está imune a riscos de captura política e mudanças de orientação em momentos de pressão econômica ou eleitoral.
2.3 Implicações para o Brasil
A adoção efetiva do PL no Brasil enfrenta obstáculos adicionais aos apresentados. Em primeiro lugar, a baixa institucionalização dos registros patrimoniais e a heterogeneidade da qualidade da informação entre entes federativos dificultam a consolidação de balanços confiáveis. Em segundo lugar, o histórico de mudanças metodológicas sucessivas fragiliza a credibilidade do indicador, tornando-o pouco estável para fins de regra fiscal. A reavaliação constante do PL, com impactos bilionários sem lastro em eventos econômicos concretos, reforça a percepção de que ele pode ser manipulado, fragilizando sua função de âncora fiscal e de indicador central para sustentabilidade governamental. Em terceiro lugar, há desafios políticos: a valorização do PL exigiria revisão de práticas orçamentárias que hoje favorecem medidas de impacto imediato, mas de baixo retorno patrimonial, o que conflita com incentivos de curto prazo predominantes no processo político brasileiro. Por fim, a adoção plena do PL exigiria coordenação federativa complexa, já que parte significativa dos ativos e passivos está distribuída entre União, estados e municípios. Essas limitações indicam que, no curto prazo, o PL pode servir mais como parâmetro diagnóstico do que como meta fiscal vinculante.
3. Considerações Finais
A integração do patrimônio líquido às finanças públicas não elimina a importância do regime de caixa para gestão de liquidez, mas corrige suas limitações no diagnóstico de solvência. Ao registrar compromissos de longo prazo e valorizar a gestão de ativos, essa abordagem melhora a qualidade das decisões de política fiscal, fortalece a sustentabilidade intergeracional e amplia a credibilidade das finanças públicas – conforme restou demonstrado na literatura, sintetizada na obra Public Net Worth: Accounting – Government – Democracy e nas experiências internacionais por ela debatidas.
Ao pensar o caso brasileiro, no entanto, a utilização do PL como âncora fiscal exige a superação de desafios institucionais, técnicos e políticos: é preciso estabilizar a metodologia de cálculo, garantir auditoria independente, padronizar informações entre entes e criar incentivos de médio e longo prazo no processo orçamentário. A experiência neozelandesa comprova que a adoção de práticas patrimoniais sólidas é viável e gera ganhos significativos de governança, sustentabilidade e transparência. Ao mesmo tempo, mostra que mesmo modelos bem-sucedidos enfrentam dilemas práticos e políticos, reforçando a necessidade de um desenho institucional capaz de blindar o PL contra manipulações e assegurar que sua utilização efetiva sirva como instrumento de estabilidade fiscal de longo prazo, e não apenas de ajuste conjuntural.
- Adaptação textual realizada pelos pesquisadores do Centro de Cidadania Fiscal – Diego Gonzalez e Giovanna Agualuza. ↩︎
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