Apresentação realizada por Domingos Poubel de Castro, em 22/08/20251
1. Introdução
O debate sobre o orçamento público brasileiro revela tensões persistentes entre normas legais, práticas contábeis e exigências de gestão. A prevalência do regime de caixa modificado, apoiado na figura do empenho, gerou ao longo das décadas distorções significativas na informação orçamentária, notadamente a perpetuação dos chamados “restos a pagar”. Esse modelo compromete a transparência, fragiliza o planejamento e cria entraves à avaliação dos resultados.
Diante desse cenário, a experiência prática de implantação do orçamento por competência em instituições não governamentais, como o SEBRAE, constitui um exemplo relevante de como é possível alinhar orçamento e contabilidade, reduzir inconsistências e fortalecer a função informacional do sistema orçamentário visando alcançar melhoria na gestão alocativa e na utilização dos recursos disponíveis.
2. Evolução histórica e experiências observadas
2.1 Construção histórica e a busca por sistemas de informação
Desde os anos 1980, a agenda de reformas no setor público esteve fortemente associada ao desenvolvimento de sistemas de informação que pudessem apoiar a tomada de decisão. A criação do Tesouro Nacional e a concepção do SIAFI representaram esforços para consolidar planos de contas integrados, capazes de abarcar diferentes naturezas jurídicas. Nesse contexto, destacou-se a percepção de que a ausência de informação não derivava apenas da carência de instrumentos de informática, mas de sistemas de informação bem estruturados. Contabilidade e orçamento precisavam falar a mesma língua, consolidando-se como bases para controle interno e para o planejamento estatal.
Para exemplificar a questão problemática do desalinho entre orçamento e contabilidade, trouxe a exemplificação dos restos a pagar, ocasião em que as despesas empenhadas em um exercício fiscal não são pagas no exercício respectivo e que se distinguem entre processados (quando houve liquidação, mas não pagamento), ou não processados (quando não houve nem liquidação, nem pagamento). Embora o primeiro caso seja comum, o segundo exemplo é tido como uma “maldição”, visto que a prática passou comprometer a fidelidade patrimonial das contas públicas – ao registrar uma despesa sem efetiva realização.
Ao longo dos anos, houve tentativas de corrigir a distorção por meio de decretos presidenciais e propostas de alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas apesar de avanços pontuais, resistências políticas mantiveram a prática. A discussão, portanto, não é meramente contábil, mas político-institucional: trata-se da perpetuação de um erro conceitual — chamar de “passivo” o que ainda não é obrigação – comprometendo tanto a transparência quanto a previsibilidade do orçamento.
2.2 A experiência do SEBRAE: orçamento por competência na prática
O ambiente do Sistema “S”, por não depender da lógica do empenho (pois não segue o mesmo arcabouço legal de um ente público regido pelas leis de finanças públicas), permitiu testar um modelo alternativo de execução. No SEBRAE, consolidou-se por quinze anos um orçamento baseado no regime de competência, no qual contabilidade e orçamento eram tratados de forma integrada.
Essa experiência gerou inovações relevantes, com destaque para:
- eliminação da duplicidade de registro da despesa contábil e orçamentária[1];
- orçamento baseado em indicadores, com estímulos e limites à gestão para o alcance de objetivos da instituição;
- maior previsibilidade entre planejamento e execução, dado o alinhamento entre fatos contábeis e efeitos orçamentários;
- clareza institucional, facilitando inclusive o entendimento de dirigentes sobre o que significa receita, despesa e superávit.
Além disso, o modelo permitiu explorar distinções conceituais relevantes. Ficou claro que o patrimônio total (compreendendo ativos físicos e intangíveis) pertence ao domínio contábil, enquanto o patrimônio financeiro é o que deve fundamentar o orçamento. Assim, variações no superávit financeiro constituem informação orçamentária; já depreciação e provisões sem impacto no caixa permanecem apenas no âmbito contábil. Essa diferenciação é pouco compreendida na literatura internacional2, mas mostrou-se central para a coerência do modelo.
2.3 Questões estruturais do orçamento brasileiro
A discussão ampliada trouxe ainda elementos que reforçam a dificuldade de adotar plenamente o regime de competência no setor público. Três pontos se destacam:
- Receitas irreais: a prática recorrente de previsões infladas desestrutura o equilíbrio fiscal e fragiliza a credibilidade do orçamento, transformando-o em peça política.
- Fontes e fundos: a proliferação de fundos específicos e a falta de controle efetivo por fonte dificultam a gestão financeira. A Lei de Responsabilidade Fiscal buscou corrigir o problema ao determinar que a disponibilidade financeira fosse apurada por fonte, mas sua aplicação ainda encontra assimetrias entre União, estados e municípios.
- Planejamento de médio prazo: a rigidez do Plano Plurianual (PPA) compromete sua utilidade em contextos de crise. A experiência do SEBRAE mostrou que modelos móveis, ajustados anualmente para os quatro anos seguintes, podem oferecer maior aderência à realidade e fortalecer a ligação entre planejamento, orçamento e execução.
3. Conclusão
A experiência com o orçamento por competência demonstra a possibilidade de superar problemas históricos da gestão orçamentária brasileira, ao integrar contabilidade e orçamento sob uma mesma lógica. A prática no SEBRAE provou que é possível eliminar distorções como restos a pagar, reduzir a necessidade de manobras normativas e tornar a informação mais útil tanto para gestores quanto para órgãos de controle.
Apesar disso, os obstáculos à adoção plena do regime de competência no setor público permanecem significativos. A resistência política, a baixa previsibilidade das receitas e a falta de clareza na distinção entre patrimônio contábil e financeiro dificultam reformas mais profundas. Ainda assim, o caso do SEBRAE sinaliza um caminho: alinhar a execução orçamentária ao regime de competência pode fortalecer a transparência, simplificar a gestão e recuperar a centralidade da informação contábil-orçamentária como instrumento de decisão.
- Adaptação textual realizada pelos pesquisadores do Centro de Cidadania Fiscal – Diego Gonzalez e Giovanna Agualuza. ↩︎
- Para ver uma análise mais aprofundada sobre a questão caixa x competência na literatura internacional, sugerimos a exposição sobre o tema, disponível em: < https://ccif.com.br/orcamento-por-competencia-revisao-da-literatura-dos-ultimos-20-anos/ >. ↩︎
Apresentação Completa: