Apresentação realizada por Diego Gonzalez e Giovanna Agualuza, em 26/09/2025
1. Introdução
A apresentação consolida os achados de um levantamento bibliográfico e uma revisão da literatura internacional dos últimos 20 anos sobre a transição do regime orçamentário de caixa para o de competência no setor público. A pesquisa focou na análise da implementação e dos desafios enfrentados por diferentes países, com base em 43 trabalhos, incluindo artigos, livros e relatórios de organismos como a OCDE, o FMI e o Banco Mundial. A análise excluiu contextos pré-reformas (décadas de 80 e 90) para concentrar-se nas experiências mais recentes, sendo que mais de 75% dos estudos analisados foram publicados a partir de 2013. O objetivo da exposição foi apresentar os fundamentos teóricos, os desafios e resoluções encontrados nas experiências internacionais, o contexto brasileiro e uma síntese dos benefícios e críticas associados ao orçamento por competência com base nos estudos selecionados.
2. Fundamentos dos Sistemas Orçamentários e Contábeis
2.1. O Papel dos Sistemas Orçamentários
Os sistemas orçamentários são estruturas formais que materializam escolhas políticas, técnicas e de gestão. Embora não haja um consenso único sobre sua finalidade, pontos comuns emergem na literatura. Segundo Alan Schick (2004), um sistema orçamentário robusto deve atender a múltiplos propósitos, com destaque para: (a) estabelecer uma posição fiscal estável e sustentável a médio e longo prazo para o Governo, (b) facilitar a realocação de recursos para usos de maior prioridade e eficácia, (c) incentivar a eficiência operacional das unidades gestoras do orçamento, (d) ser acessível e responsivo aos cidadãos e (e) garantir a prestação de contas (accountability) na aplicação dos recursos públicos.
A literatura aponta que a centralidade desses sistemas reside em sua capacidade de traduzir planos políticos em políticas públicas, servir como mecanismo de controle externo e sistematizar informações para a tomada de decisão interna, ou seja, são cruciais para o bom desenvolvimento fiscal de um país.
2.2. A Relação entre Contabilidade e Orçamento
Além de sua importância por si só, o orçamento público também tem estrita relação com a contabilidade pública e, embora distintos, são inseparáveis: enquanto o orçamento é um plano que “olha adiante”, a contabilidade registra e mensura o que “foi feito”. A robustez do sistema orçamentário depende, portanto, diretamente da confiabilidade do sistema contábil, formando um elo crucial para a transparência e a performance fiscal do setor público. A implementação do regime de competência, neste sentido, permite uma visão integral da temporalidade dos custos e da real posição fiscal do governo, evitando as distorções que podem ocorrer no regime de caixa.
2.3. Regime de Caixa x Regime de Competência
Com relação a diferenciação dos regimes, há um um elemento fundamental nessa distinção: o momento de reconhecimento dos fatos contábeis. Enquanto o orçamento por caixa reconhece as transações apenas quando ocorre recebimento ou pagamento (ou seja, quando há movimentação no fluxo de caixa), o orçamento por competência reconhece as transações quando a obrigação é gerada independentemente do fluxo de caixa.
A literatura indica que a transição não é binária, existindo modelos intermediários como a contabilidade em caixa modificada e a de competência modificada. Essa flexibilidade permite a existência de um “leque de opções” técnicas na implementação, por meio de diferentes tratamentos em aspectos como a gestão de caixa e o tratamento de itens não monetários, como a depreciação de ativos e reconhecimento de passivos.
3. Experiências Internacionais na Adoção do Orçamento por Competência
A análise de casos internacionais revela diferentes caminhos e níveis de sucesso na transição para o regime de competência, que elucidam a discussão apresentada anteriormente. Os países destacados foram os mais observados na literatura. São eles a Nova Zelândia, Austrália e Reino Unido. Após, outras experiências relevantes também foram apresentadas para complementar a exposição.
3.1. Países Pioneiros
3.1.1 Nova Zelândia
Adotou um modelo de competência integral, com simetria entre orçamento e contabilidade. A reforma foi relativamente rápida (seis anos). Inovações incluem a avaliação de ativos a valor de mercado, a inclusão de passivos contingentes e a cobrança do custo de capital mediante a aplicação de uma taxa sobre o capital investido (capital charge) para responsabilizar gestores. O foco das dotações está nos outputs (produtos e serviços). Os principais benefícios foram o aumento da transparência e o uso eficiente do capital, enquanto os desafios se concentraram na valoração de ativos e na capacitação técnica.
3.1.2 Austrália
Também implementou um regime de competência integral, com uma transição mais longa (10 anos). O foco das dotações é em outcomes (resultados), um passo além dos outputs. A reforma melhorou a gestão de ativos e a transparência fiscal, mas enfrentou desafios na coordenação federativa e na capacitação técnica.
3.1.3 Reino Unido
Adotou um modelo híbrido, combinando competência e caixa. O orçamento é dividido entre despesas controláveis e plurianuais (DEL, por competência) e despesas anuais e não planejáveis (AME, por caixa)1. Uma inovação importante foi a criação do Whole of Government Accounts (WGA), um relatório contábil consolidado de todo o setor público. O modelo trouxe melhor alinhamento entre orçamento e contabilidade, mas sua natureza dual gerou complexidade e desafios na qualidade dos dados.
3.2. Outros Casos Relevantes
3.2.1 Canadá
Adotou um modelo parcial, onde o orçamento é votado em regime de caixa, mas as análises macroeconômicas de sustentabilidade fiscal são feitas por competência. Sua contabilidade é integralmente por competência, baseada em normas nacionais.
3.2.2 Estados Unidos
Apresenta maior resistência à mudança, mantendo o orçamento por caixa e a contabilidade por competência – com diferentes tratamentos quanto à depreciação, o que gera lacunas informacionais.
3.2.3 Holanda
Tentou um modelo híbrido, mas a reforma não foi completada devido a desafios na gestão de padrões conflitantes (ESA e IPSAS), resistência cultural e capacitação insuficiente.
4. O Contexto Brasileiro
O Brasil encontra-se em uma posição intermediária nesse processo de modernização. Por um lado, a contabilidade pública brasileira já opera por regime de competência, com um enfoque patrimonial e em processo de convergência com as normas internacionais (IPSAS) desde 2008. Este é um ponto de partida favorável.
Sob a ótica do orçamento, pode-se dizer que opera em regime de caixa modificado, também conhecido como “orçamento por compromisso”, norteado pelas fases de dotação, empenho, liquidação e pagamento, conforme a Lei 4.320/64. Apesar de possuir um arcabouço normativo robusto, o país enfrenta uma “inflação de regras” e elevada rigidez orçamentária, que limitam o espaço para inovações e despesas discricionárias.
Recentemente, iniciativas como a Emenda Constitucional 102/2019 já preparam o terreno para uma visão de médio prazo, como um Marco Fiscal de Médio Prazo (MFMP) – ao possibilitar a previsão de despesas plurianuais para a Lei Orçamentária Anual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias. O país está, portanto, “no meio do caminho”, já possuindo a base contábil necessária, mas ainda carecendo de inovações na esfera orçamentária.
5. Benefícios e Críticas ao Regime de Competência (Síntese da Literatura)
5.1. Benefícios Esperados
A literatura aponta consistentemente para os seguintes benefícios da adoção do regime de competência, sumarizados aqui pelos seguintes pontos:
- Melhoria na Informação para Decisão: Fornece uma visão mais completa de custos, passivos, outputs e outcomes, aumentando a transparência e a accountability;
- Melhoria na Gestão de Ativos e Capital: A inclusão da depreciação e do planejamento de investimentos melhora a gestão patrimonial;
- Visão de Longo Prazo: Permite uma análise mais holística dos impactos intergeracionais e dos passivos futuros, como as pensões;
- Coerência e Harmonização: Alinha o orçamento e a contabilidade sob o mesmo regime, melhorando a simetria das informações;
- Indução ao Orçamento por Resultados: O foco em custos totais incentiva uma gestão orientada para resultados, outputs e outcomes.
5.2. Críticas Recorrentes
Com relação às críticas e desafios, os achados mais comuns incluem:
- Complexidade: O sistema por competência é inerentemente mais complexo que o de caixa, especialmente no que tange à valoração de ativos e cálculo da depreciação;
- Perda de Controle Parlamentar: Existe a preocupação de que o Parlamento possa perder poder de controle sobre as finanças públicas;
- Falta de Consenso Técnico: Não há um modelo único e consensual para o reconhecimento e a depreciação de ativos governamentais, o que pode abrir margem para contabilidade criativa;
- Necessidade de Reformas Amplas: A transição deve ser gradual e acompanhada de outras reformas administrativas, com foco em mudança de cultura e accountability, para que seus objetivos não sejam comprometidos.
6. Conclusão
A revisão da literatura internacional demonstra que não há um modelo único para a implementação do orçamento por competência, mas sim um “leque de opções” que permite arranjos institucionais adaptados à realidade de cada país. O sucesso da transição depende de fatores como capacidade institucional, capacitação técnica e vontade política. As experiências de sucesso, como as da Nova Zelândia e Austrália, foram marcadas por reformas graduais e integradas, que alinharam tanto o orçamento quanto a contabilidade e foram parte de um movimento mais amplo de modernização da gestão pública.
O Brasil, por já possuir uma contabilidade por competência alinhada a padrões internacionais, detém um ponto de partida vantajoso. O desafio reside em avançar na modernização do seu sistema orçamentário, superando a rigidez e a complexidade normativa para construir um modelo que promova maior transparência e eficiência aliadas à melhor alocação dos gastos públicos, promovendo sustentabilidade fiscal a longo prazo.
- No sistema orçamentário do Reino Unido, DEL (Departmental Expenditure Limit — Limite de Despesa Departamental) refere-se aos gastos planejáveis e controláveis pelos departamentos, enquanto AME (Annually Managed Expenditure — Despesa Gerida Anualmente) abrange despesas variáveis e menos previsíveis, ajustadas a cada exercício fiscal. ↩︎