Bernard Appy
Artigo publicado no jornal Estado de São Paulo, em 11 de maio de 2015
Na semana passada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completou quinze anos. Os avanços obtidos com a LRF, em conjunto com a renegociação da dívida dos Estados e Municípios pela União, são inequívocos. Partindo de uma situação de absoluto descontrole em meados dos anos 90, as finanças estaduais e municipais encontram-se hoje claramente mais organizadas. Também houve avanços importantes na direção de uma maior transparência na gestão fiscal das três esferas de governo.
Isto não significa que as contas públicas do país estão hoje totalmente controladas. A necessidade de um ajuste fiscal emergencial de grandes dimensões por parte da União – baseado, em grande medida, em um aumento da carga tributária – e a penúria enfrentada por alguns Estados e Municípios neste início de 2015 são a prova disso.
De fato, ainda há muito a ser feito para alcançar uma situação de efetiva responsabilidade fiscal no Brasil. Uma situação em que as decisões de política fiscal em um determinado momento não deixam uma conta excessiva a ser paga pelas gerações futuras.
Parte do que necessita ser feito passa pela regulamentação de dispositivos já previstos na LRF. Este é o caso, por exemplo, do limite de endividamento da União, que nunca foi regulamentado pelo Senado Federal. É o caso também da não criação do Conselho de Gestão Fiscal, órgão colegiado previsto na LRF, cuja função seria a de definir normas de contabilidade pública e harmonizar as práticas dos entes federados.
Mas a principal deficiência da LRF, de meu ponto de vista, é que ela não resolve bem a questão da consistência de longo prazo da política fiscal. Dois dos dispositivos mais importantes da LRF que tinham este objetivo, os artigos 14 e 17, na prática nunca “pegaram”. O artigo 14 estabelece que qualquer medida de desoneração tributária deve ser compensada por um aumento de outras receitas. Já o artigo 17 estabelece que medidas que criem ou elevem despesas obrigatórias de caráter continuado devem ser compensadas pelo aumento permanente de receitas ou pela redução permanente de outras despesas.
Uma das razões pelas quais estes dispositivos não pegaram é que eles não incorporam adequadamente a expansão real das receitas decorrentes do crescimento econômico. Ou seja, mesmo quando houvesse uma base consistente para a desoneração tributária ou a expansão de despesas, que é o aumento da arrecadação decorrente do crescimento econômico, a LRF não permitiria a utilização destes recursos. Adicionalmente, a LRF proíbe que desonerações tributárias sejam compensadas pela redução de despesas.
Estas inconsistências acabaram fazendo com que estes dois dispositivos da LRF que, se bem regulamentados, poderiam contribuir para dar grande consistência à trajetória fiscal de longo prazo na prática nunca fossem implementados.
Por outro lado, a LRF não estabelece como será compensado o crescimento real de despesas obrigatórias preexistentes cujas regras não foram alteradas, como benefícios previdenciários, mesmo que este crescimento seja explosivo no longo prazo.
Talvez estes quinze anos da LRF sejam um bom momento para discutir aperfeiçoamentos na Lei. Há várias pessoas que vêm analisando e discutindo o assunto.
Para mim, a mudança mais necessária é o aprimoramento dos dispositivos já citados da LRF, que disciplinam os limites para a expansão de despesas e para a redução de receita via desonerações tributárias. Para que fossem efetivamente aplicáveis, estes dispositivos deveriam ter como referência uma projeção confiável da trajetória de longo prazo das receitas e despesas públicas, incorporando o crescimento real não apenas das receitas, mas também das despesas obrigatórias já existentes. Idealmente esta projeção teria de ser elaborada por uma instituição independente, para evitar sua manipulação política, a exemplo do que já fazem vários países.
Com base nesta trajetória seria possível definir periodicamente qual é o limite para a expansão de despesas e qual é o limite para a redução de impostos (ou a necessidade de elevação de tributos) que garantem a consistência fiscal de longo prazo. O ideal é que estes limites fossem fixados a cada quatro anos, cabendo a cada governo e a cada legislatura definir suas prioridades.
Outra mudança importante no escopo da LRF seria a ampliação do escopo das despesas cuja limitação é regulada pela Lei, de modo a incorporar despesas que não são contabilizadas como gastos primários, como, por exemplo, a diferença entre o custo de captação do Tesouro e o custo dos créditos concedidos pelo Tesouro para bancos oficiais.
Adicionalmente, seria importante que despesas a serem realizadas ao longo de vários anos – como, por exemplo, a concessão de subsídios a operações de crédito – fossem contabilizadas integralmente a valor presente, de modo a que seu custo fosse arcado integralmente pelo governo que decidiu realizar a despesa.
Por fim, seria importante que houvesse, na LRF, uma distinção entre limites para períodos normais e limites temporariamente ampliados para períodos de crise, em que se faz necessária uma gestão anticíclica da política econômica. A título de exemplo, se um Estado ocupa todo seu limite de endividamento em um período de crescimento econômico, não sobra qualquer espaço para fazer política anticíclica em períodos de crise.
Em suma, se a LRF foi um grande avanço, ainda há muito a ser feito se queremos ter um regime de gestão fiscal no qual não deixamos para as gerações futuras a conta das decisões que tomamos hoje. Além do reforço da cidadania fiscal, um regime com
estas características certamente teria um impacto muito positivo sobre o clima de negócios e o potencial de crescimento de nossa economia.